Volto a San
Francisco, minha cidade favorita até agora na viagem. Mas não é uma repetição.
De início, fico em outro albergue, em outra zona da cidade, e vejo coisas bem
diferentes. É como se fosse uma nova cidade, pois San Francisco parece esconder
várias outras cidades dentro de si, basta ter paciência e tato para
descobri-las.
Caminhadas
Casey
Caminho e
ouço um rapaz dizer: “Diego!”. Um conhecido? Não, na verdade ele disse “San
Diego!”, pois estou usando um boné de lá. Ele tem uma mochila grande nas costas
e parece um viajante. Não sei como o papo começa, mas logo fala sobre um livro
que leu. “Keep the river on your right”, que eu lembre. É sobre um cara,
americano, conta ele, que viajou para a Argentina e viveu com tribos
primitivas, que descobriu, mais tarde, serem canibais. Descobre, também, que
saqueiam e matam as tribos vizinhas, capturando suas mulheres e tudo o mais. Um
dia, uma das tribos vizinhas invade a sua, ele é poupado e, em meio a um
ritual, ele se vê comendo carne humana também. Menciono o livro “Into the Wild”,
lançado no Brasil como “Na natureza selvagem”. Ele diz que adora o livro, que
admira muito MacCandles, o biografado, por ter tido a coragem de abandonar tudo
e se livrar dos seus bens materiais. Diz que o filme, dirigido por Sean Penn, a
quem também admira, foi ótimo. Eu falo com Casey, um jovem americano que viveu
em várias cidades dos EUA. Sua mãe se mudou com ele e o irmão mais velho para
outra cidade pois estava cansada de apanhar do seu pai, que ele nunca mais viu.
Se empolga e, bem articulado, emenda um assunto no outro. Fala mais sobre a
experiência de inserir em outras culturas e absorver as diferenças.
Caminhamos
por vários quarteirões pela Market Street. Presto mais atenção ao seu aspecto,
que não é dos melhores. Tem manchas e cicatrizes nas mãos, e roupas sujas.
Penso se não vai me pedir alguma gorjeta em troca do seu entretenimento . Fala
do Brasil e em como tem vontade de conhecer o país um dia. Comenta que, em
viagem, não conhecemos as pessoas normais nas cidades, mas sempre os extremos,
sejam as pessoas mais amistosas ou as mais perigosas. Não posso deixar de
concordar. As cidades, para os viajantes, são sempre um pouco enganadoras, pois
se vive num mundo à margem. Já seguimos caminhando e conversando por 15
minutos. Lá pelas tantas, Casey para e diz: “Já passei do meu ponto há alguns
quarteirões, mas a conversa estava boa e não quis interromper. Antes de nos despedirmos, ele diz,
contrariando totalmente a minha expectativa: “Você precisa de alguma coisa?”, e
coloca a mão, meio indeciso, em uma
pequena bolsa que carrega. Olha minhas pulseiras, tira duas suas e me dá. “Pra
ter uma lembrança de San Francisco”, diz. Uma delas diz “Las Vegas”, a outra
“Tipsy”. Seguimos cada um nosso caminho.
Carolin
Saímos para uma longa caminhada. Nenhum de nós sabe, mas serão pelo menos 6 horas andando. Vamos para Golden Gate Park. O sobrenome dela é Teufel. Me diz que em alemão significa “Devil”. Na entrada do Golden Gate park, se você ficar parado por mais de 10 minutos, alguém certamente lhe abordará oferecendo maconha.No parque, tenho provas de que o meu perfeito senso de direção, do qual tinha certo orgulho, pois parecia ter uma bússola interna sempre me indicando onde é o Norte, está irremediavelmente avariado. Seguindo minhas indicações, damos voltas em círculos, nos perdendo várias vezes no enorme parque, até que depois de algumas horas desistimos de cruzá-lo e voltamos ao ponto inicial.
Digo que na volta podemos pegar um ônibus, pois será no mínimo mais uma hora de caminhada, e Carolin disse estar muito cansada. Ela diz que aguenta caminhar mais um pouco. Seguimos caminhando. No caminho, decido dar uma esticada até Japan Town. Não há nada de mais lá. Mesmo com um mapa nas mãos, cometo um erro absurdo e tomo a direita quando deveria virar à esquerda. Só percebo 10 quarteirões depois. Ou seja, são 20 quarteirões adicionados ao passeio gratuitamente. Carolin, cansadíssima, quase não acredita no meu erro. Toma o mapa das minhas mãos e diz que vai fazer o próprio caminho agora, fechando a cara. Sugiro uma ou outra alteração na rota de volta, que ela ignora. Caminhamos muito, subindo e descendo ladeiras. Eu tento apreciar a viagem, Carolin, séria, só quer chegar e tomar um banho. Chega ao albergue com uma cara de exausta. Diz que no dia seguinte quer ir a um certo museu. Minto que sei onde fica, e que posso levá-la até lá. Ele me olha e diz: Com você, não.
Ismos
Barbarismos
Uma galesa
cercada por um brasileiro, um americano e um alemão. Entediada, ela lança o
desafio: queda de braço entre os machos. Americano X Brasileiro. Apesar de o
brasileiro perder na queda de braço até pra mulher, e ter tido o pulso quebrado
no ano anterior, consegue resistir por vários segundos contra o americano, chegando
a pensar que este está apenas prolongando o sabor da vitória ao fingir
fraqueza. O ângulo indica favorecimento ao brasileiro. O olhar do americano, de
surpresa e esforço, é o anúncio desesperado da sua derrota. Brasileiro X
Alemão. Brasileiro vai cheio de confiança. Esgotado da batalha anterior, não
resiste por muito tempo, e logo vê as costas da sua mão beijando a fria mesa.
Alemão e Galesa unem as forças, sem embate.
Racismo
Dois
colegas de quarto são um casal inglês (Nordeste da Inglaterra, me diz ela,
confiando que não vou mesmo saber a cidade. “Sul do Brasil”, me vingo eu quando
me pergunta de onde sou. Ficarão ali por mais alguns dias e depois irão pra
Nova Iorque. Digo que também vou pra lá, no mesmo período que eles. No fim, com
desencontros, não os vejo mais nem pego contato nem nada. Nunca mais nos
veremos.
O outro
roommate é turco. Quieto, na dele. Ouve hip hop no computador sem fone de
ouvido, mas não crio caso. “Fucking Asians!”, diz ele, um dia, do nada, decerto
escutando Kanye West, ou 50 cent ou alguma merda dessas. Por quê, digo eu,
supreso. “Fucking Asians. So many damn Asians”, insiste. Eu digo que não
entendo o quen ele está querendo dizer. Agora é a vez dele de ficar surpreso,
pois para ele parece que a sua declaração prescinde de justificativas. Explica
que naquele dia chegaram muitos asiáticos no albergue. Não gosta deles. Não
gosta das mulheres asiáticas. Ainda de boca aberta com suas declarações,
retruco tentando disfarçar ao máximo o meu choque de ter um colega de quarto
abertamente racista (e ainda por cima racista com uma das minhas raças
favoritas!). Digo que essa noite vou apresentar a ele uma asiática. E que
depois disso ele vai acabar mudando de ideia. Ele só ri, para meu alívio.
À noite, o
mestre de cerimônias, anunciando a festa, revela que há um policial infiltrado
no albergue, e que na noite passada ele prendeu uma pessoa. Segundo ele, essa
pessoa resistiu à prisão e o policial teve que usar a força. Diz,
gargalhando, que assistiu ao vídeo da
prisão uma dúzia de vezes. Lá pelas tantas, ao querer descrever a cena, solta
um “Rodney King”.
Após,
descer do palco, sorrindo, é abordado por uma negra. “Eu preferiria que você
nunca mais usasse essa referência a Rodney King”, diz ela. Daí se segue um
curto debate cheio de ataques e defesas, com ele se defendendo da sua suposta
referência racista. Ele diz que ninguém se ofendeu. E ela, fazendo um largo
gesto com a mão, diz que não há qualquer outro negro entre as dezenas de
pessoas na sala. Ele volta ao palco, com a moça, e diz que há um mal entendido,
que por ter usado essa referência uma pessoa se sentiu ofendida. Ela pede que
ele explique quem foi Rodney King, pois muita gente pode não saber, afinal faz
14 anos e muita gente ali era criança na época. Ele responde, ainda no
microfone: “Alguém aqui se importa?”. Ela toma o microfone e explica o
episódio, afirmando que é por referências supostamente inocentes e jocosas como
a dele que se perpetua o racismo. Ela desce do palco e ele, em sua defesa, diz
que estudou numa escola de negros, sendo o único chinês, e que sabe como é, e
que os seus melhores amigos são todos negros. Ele a chama, e ela, a um canto da
sala, de costas, tomando café, o ignora. Uma moça, branca, se levanta e vai até
ela, colocando a mão em suas costas e falando algo. Ela não se move.
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