É uma pena
que não tenha muita coisa boa pra falar sobre San Diego.
Já havia
estado lá em 1999, há exatos 13 anos, e foi minha primeira experiência
internacional (Uruguai, tão parecido com o Rio Grande do Sul, não conta). Na
época fiquei deslumbrado com tudo, com o sol incessante, com a arquitetura, com
as cores, com os carros, com os diferentes refrigerantes disponíveis nas
vending machines, com os supermercados 24h, com os trolleys, com as pessoas.
Mas já sabia que, depois de morar um ano e meio no Canadá e ter viajado por
toda a costa oeste americana por três estados, San Diego não seria mais a mesma
coisa. A cidade cresceu, e eu também mudei.
A primeira
impressão da nova visita se dá pelo cheiro. Cheiro de urina, principalmente.
Desde a chegada à estação Santa Fe Depot, o odor de mijo parece estar
impregnado dentro da estação, fora dela, nas paredes, nas ruas, nas pessoas, no
ar. O cheiro me acompanha ainda dentro do trem e também no ônibus, onde embarcam
pessoas feias e malvestidas, que não lembro ter visto em tão grande número há
anos atrás. Ao caminhar pra casa, o cheiro finalmente esvanece, mas fica na
memória.
Aquilo que
parecia novidade agora é comum, e outros aspectos, comparados às outras
cidades, deixam a desejar. Por exemplo, o sistema de transporte. Poderia
enumerar aqui dez razões pelas quais San Diego tem disparado o pior sistema de
transporte público entre todas as cidades que já visitei na América do Norte.
Grande demora dos ônibus e trolleys, falta de conexão com outras linhas,
itinerários desnecessariamente longos, não há reaproveitamento de tíquetes
entre diferentes linhas (o que praticamente força o passageiro a comprar o
passe diário).
Há algumas
ciclovias, mas quase ninguém anda de bicicleta. San Diego não deixa dúvidas:
foi contruída para os carros. Se deslocar a pé, com exceção do Centro, é um
suplício. Há de se caminhar por várias quadras até que se chegue a um ponto
onde a travessia de pedestres é permitida. Em muitas ruas não há calçadas. A
falta de consideração com os que não são motoristas pode ser notada também
dentro dos ônibus. Espaços muito reduzidos entre os assentos não dão lugar para
as pernas, e o usuário deve sentar-se de lado (mesmo eu, que não sou nada alto:
1,73m).
San Diego
foi também uma quebra de ritmo na viagem. Reencontrei a mesma família que me
hospedou em 1999. Um casal de irmãos iranianos criados em Londres e já há
décadas nos EUA, Masoud e Minou. Na primeira vez fiquei na casa dele, agora na
confortável casa da irmã. Depois de dormir no chão, dividir quartos com até 12
pessoas, tomar banhos frios e comer pão velho com água no café da manhã, foi um
choque de conforto dormir numa cama macia com 4 travesseiros mais macios ainda
num quarto só pra mim (com TV a cabo que não cheguei a ligar), e uma oferta de
pães, bolos, geleias, sucos e frutas (figos, melancia, melão). Apreciei a hospitalidade, mas acho que me fez
mal, me deixando mais preguiçoso e reticente se deveria mesmo ficar tão à
vontade a ponto de ficar mal acostumado antes de seguir viagem (experimentei a
rede no vasto quintal apenas por 5 minutos).
Minou já
tem seus cinquenta e tantos e não é muito de sair à noite, então ficamos em
casa literalmente tomando chá (e às vezes uma taça de vinho branco gelado em
cálices bregas) e vendo TV. Ela gosta de falar, emenda um assunto no outro, religião,
Deus, comida, livros, Irã, fofocas, relacionamentos, maternidade, etc e tento não interromper. Digo que vou me
sentir mal se não puder ajudar na casa, e ela me leva a sério. No dia seguinte
já tenho uma lista de tarefas: botar a mesa do café da manhã, lavar a louça, levar o lixo, limpar o pátio, juntar as folhas secas, mover os vasos e mesas do
quintal, tirar as teias de aranha, preparar o jantar, fazer a mesa, lavar a
louça.
Os
programas com Minou são invariavelmente com gente mais velha que ela. Num
almoço de iranianos, a pessoa mais nova devia ter o dobro da minha idade.
Quando sabe que sou brasileiro, uma mulher começa a falar do passado, que
conheceu um brasileiro há muitos anos, que gostava muito dele, e que depois que
ele voltou para o Brasil perderam o contato, coisa que ela lamenta demais (está
lacrimejando?), pois não sabe se ele está vivo ou morto. A casa é do Dr. Taraz,
um senhor de 88 anos que Minou diz ser “um ser humano”, como se isso fosse o
maior elogio que alguém pode receber. É um geólogo que viajou o mundo e que
supostamente tem histórias pra contar. Me sento ao lado dele, na cabeceira da
mesa, ansioso para ouvir as tais histórias. As mulheres não param de me servir comida. Arroz, muito arroz. Se
soubessem o horror que tenho a arroz...Mas como fingindo satisfação. Termino com esforço, e me servem de mais arroz. Isso
deve ser um problema que afeta a visão das pessoas idosas, só pode: elas
enxergam as coisas mais estreitas do que são, e pra elas todos são magros
esqueléticos (que precisam de quantidades enormes de comida para ficarem
saudáveis novamente). Converso com o Dr. Taraz, mas não vejo a inteligência
toda com que Minou lhe atribui. Há alguns meses teve um derrame, e sua fala é
arrastada, os olhos são embaçados e vagos, como se estivesse permanentemente se
acordando, e ele se repete, e se repete, e se repete. Quando faço alguma
pergunta, em vez de responder e comentar, ele apenas repete o que já havia dito
antes. O ritmo de sua fala, associado à grande quantidade de arroz ingerido
durante o almoço (e depois ainda teve sobremesa e frutas e chá) me embalam no
sono. Em alguns minutos estarei no chão da sala, dormindo um longo e profundo
sono...
Na casa de
Minou mora também Barry, que aluga um quarto. Ele é ex-noivo da filha de uma
amiga de Minou. Quando ele estava procurando apartamento, Minou ofereceu o
quarto como presente de casamento, até que fossem morar juntos, o que lhe daria
boas chances de economizar uma grana. Nesse meio tempo, sua noiva terminou com
ele, mas Minou manteve a oferta. Mas ele fez questão de pagar. Barry é um
Marine, soldado que já foi pro Irã, Iraque e Afeganistão. Tem uma Harley-Davidson que passa meia hora
por dia polindo, e gosta de caçar veados. É um tipo meio tosco, de cabeça
quadrada, simples e com jeito de soldado perfeito: é um americano orgulhoso,
forte e burro. Ou seja, eu teria todos os motivos pra odiá-lo, senão pra
ignorá-lo. Mas o cara se mostra extremamente gentil com todos, amigável,
interessado, e sempre elogia a minha comida (não para mim, mas para os outros
que não tiveram a oportunidade de experimentar meu angu). E eu, que odeio as
guerras americanas e militares em geral, que já escrevi artigos contundentes
condenando a caça e os caçadores, me surpreendo ao me deparar com mais um dos
meus preconceitos sendo derrubado.
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Minou teve
que viajar, então saí da casa dela e fui para um albergue. Logo na entrada,
vejo uma cara conhecida, é Ian, que conheci em San Francisco. Ele está chegando
ao mesmo tempo que eu e fica no mesmo quarto. No segundo dia chegam duas
inglesas. Não as reconheço, mas elas dizem que já me conheciam também do
albergue em San Francisco. No dia seguinte todos saem (ou foram embora ou
trocaram de quarto, cuja janela fica totalmente exposta aos barulhos dos bares
da rua até as duas da manhã. Chega uma argentina. Nancy. Ela fala mal inglês,
entende pouco, então me esforço para falar espanhol, coisa que nunca
experimentei fazer antes. Eu entendo 90% do que ela diz na sua língua, então
passo o resto do dia (vamos jantar e à noite a um bar) praticando meu ridículo
castelhano. Nancy mora na Patagônia, e diz que não há nada para se fazer lá,
que é um tédio total. Então à noite se pinta toda (com certo exagero para o meu
gosto, pois a maquiagem acrescenta alguns anos aos seus 29), põe um vestido
preto curto e diz: “Quiero bailar”. Ainda ficamos um tempo no albergue, jogando
“beer pong” em duplas e perdemos dois jogos. Vamos a um bar com música alta,
peço uma cerveja e me sento. Ela está inquieta, quer “bailar”. Ela convida para
ir a até a pista. E então começo a fazer aquilo que pra mim é um dos piores
constrangimentos que a condição humana já me impôs: dançar. Quer dizer, nenhuma
pessoa sã consideraria aqueles movimentos desengonçados e desritmados que faço algo que se poderia chamar de dança.
Fico no sacrifício por alguns minutos, esperando que ela se canse e me libere
da tortura moral a que sou submetido. Depois de tentar convencer a mim mesmo
por 20 minutos que ninguém estava prestando atenção em mim mesmo, consigo
relaxar um pouco e logo ouço, de Nancy: “Too close.” Finjo que não entendo, e
me aproximo mais, colocando a mão esquerda em suas costas (nuas pelo corte do
vestido), e a mensagem vem clara: “No me toques”. Retiro a mão, e vou buscar
mais uma cerveja, pra afogar a dupla humilhação.
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