domingo, 12 de agosto de 2012

San Diego


É uma pena que não tenha muita coisa boa pra falar sobre San Diego.

Já havia estado lá em 1999, há exatos 13 anos, e foi minha primeira experiência internacional (Uruguai, tão parecido com o Rio Grande do Sul, não conta). Na época fiquei deslumbrado com tudo, com o sol incessante, com a arquitetura, com as cores, com os carros, com os diferentes refrigerantes disponíveis nas vending machines, com os supermercados 24h, com os trolleys, com as pessoas. Mas já sabia que, depois de morar um ano e meio no Canadá e ter viajado por toda a costa oeste americana por três estados, San Diego não seria mais a mesma coisa. A cidade cresceu, e eu também mudei.

A primeira impressão da nova visita se dá pelo cheiro. Cheiro de urina, principalmente. Desde a chegada à estação Santa Fe Depot, o odor de mijo parece estar impregnado dentro da estação, fora dela, nas paredes, nas ruas, nas pessoas, no ar. O cheiro me acompanha ainda dentro do trem e também no ônibus, onde embarcam pessoas feias e malvestidas, que não lembro ter visto em tão grande número há anos atrás. Ao caminhar pra casa, o cheiro finalmente esvanece, mas fica na memória.


Aquilo que parecia novidade agora é comum, e outros aspectos, comparados às outras cidades, deixam a desejar. Por exemplo, o sistema de transporte. Poderia enumerar aqui dez razões pelas quais San Diego tem disparado o pior sistema de transporte público entre todas as cidades que já visitei na América do Norte. Grande demora dos ônibus e trolleys, falta de conexão com outras linhas, itinerários desnecessariamente longos, não há reaproveitamento de tíquetes entre diferentes linhas (o que praticamente força o passageiro a comprar o passe diário).

Há algumas ciclovias, mas quase ninguém anda de bicicleta. San Diego não deixa dúvidas: foi contruída para os carros. Se deslocar a pé, com exceção do Centro, é um suplício. Há de se caminhar por várias quadras até que se chegue a um ponto onde a travessia de pedestres é permitida. Em muitas ruas não há calçadas. A falta de consideração com os que não são motoristas pode ser notada também dentro dos ônibus. Espaços muito reduzidos entre os assentos não dão lugar para as pernas, e o usuário deve sentar-se de lado (mesmo eu, que não sou nada alto: 1,73m).


San Diego foi também uma quebra de ritmo na viagem. Reencontrei a mesma família que me hospedou em 1999. Um casal de irmãos iranianos criados em Londres e já há décadas nos EUA, Masoud e Minou. Na primeira vez fiquei na casa dele, agora na confortável casa da irmã. Depois de dormir no chão, dividir quartos com até 12 pessoas, tomar banhos frios e comer pão velho com água no café da manhã, foi um choque de conforto dormir numa cama macia com 4 travesseiros mais macios ainda num quarto só pra mim (com TV a cabo que não cheguei a ligar), e uma oferta de pães, bolos, geleias, sucos e frutas (figos, melancia, melão).  Apreciei a hospitalidade, mas acho que me fez mal, me deixando mais preguiçoso e reticente se deveria mesmo ficar tão à vontade a ponto de ficar mal acostumado antes de seguir viagem (experimentei a rede no vasto quintal apenas por 5 minutos).


Minou já tem seus cinquenta e tantos e não é muito de sair à noite, então ficamos em casa literalmente tomando chá (e às vezes uma taça de vinho branco gelado em cálices bregas) e vendo TV. Ela gosta de falar, emenda um assunto no outro, religião, Deus, comida, livros, Irã, fofocas, relacionamentos, maternidade, etc  e tento não interromper. Digo que vou me sentir mal se não puder ajudar na casa, e ela me leva a sério. No dia seguinte já tenho uma lista de tarefas: botar a mesa do café da manhã, lavar a louça,  levar o lixo, limpar o pátio, juntar as folhas secas, mover os vasos e mesas do quintal, tirar as teias de aranha, preparar o jantar, fazer a mesa, lavar a louça.

Os programas com Minou são invariavelmente com gente mais velha que ela. Num almoço de iranianos, a pessoa mais nova devia ter o dobro da minha idade. Quando sabe que sou brasileiro, uma mulher começa a falar do passado, que conheceu um brasileiro há muitos anos, que gostava muito dele, e que depois que ele voltou para o Brasil perderam o contato, coisa que ela lamenta demais (está lacrimejando?), pois não sabe se ele está vivo ou morto. A casa é do Dr. Taraz, um senhor de 88 anos que Minou diz ser “um ser humano”, como se isso fosse o maior elogio que alguém pode receber. É um geólogo que viajou o mundo e que supostamente tem histórias pra contar. Me sento ao lado dele, na cabeceira da mesa, ansioso para ouvir as tais histórias. As mulheres não param de me servir comida. Arroz, muito arroz. Se soubessem o horror que tenho a arroz...Mas como fingindo satisfação. Termino  com esforço, e me servem de mais arroz. Isso deve ser um problema que afeta a visão das pessoas idosas, só pode: elas enxergam as coisas mais estreitas do que são, e pra elas todos são magros esqueléticos (que precisam de quantidades enormes de comida para ficarem saudáveis novamente). Converso com o Dr. Taraz, mas não vejo a inteligência toda com que Minou lhe atribui. Há alguns meses teve um derrame, e sua fala é arrastada, os olhos são embaçados e vagos, como se estivesse permanentemente se acordando, e ele se repete, e se repete, e se repete. Quando faço alguma pergunta, em vez de responder e comentar, ele apenas repete o que já havia dito antes. O ritmo de sua fala, associado à grande quantidade de arroz ingerido durante o almoço (e depois ainda teve sobremesa e frutas e chá) me embalam no sono. Em alguns minutos estarei no chão da sala, dormindo um longo e profundo sono...


Na casa de Minou mora também Barry, que aluga um quarto. Ele é ex-noivo da filha de uma amiga de Minou. Quando ele estava procurando apartamento, Minou ofereceu o quarto como presente de casamento, até que fossem morar juntos, o que lhe daria boas chances de economizar uma grana. Nesse meio tempo, sua noiva terminou com ele, mas Minou manteve a oferta. Mas ele fez questão de pagar. Barry é um Marine, soldado que já foi pro Irã, Iraque e Afeganistão.  Tem uma Harley-Davidson que passa meia hora por dia polindo, e gosta de caçar veados. É um tipo meio tosco, de cabeça quadrada, simples e com jeito de soldado perfeito: é um americano orgulhoso, forte e burro. Ou seja, eu teria todos os motivos pra odiá-lo, senão pra ignorá-lo. Mas o cara se mostra extremamente gentil com todos, amigável, interessado, e sempre elogia a minha comida (não para mim, mas para os outros que não tiveram a oportunidade de experimentar meu angu). E eu, que odeio as guerras americanas e militares em geral, que já escrevi artigos contundentes condenando a caça e os caçadores, me surpreendo ao me deparar com mais um dos meus preconceitos sendo derrubado.
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Minou teve que viajar, então saí da casa dela e fui para um albergue. Logo na entrada, vejo uma cara conhecida, é Ian, que conheci em San Francisco. Ele está chegando ao mesmo tempo que eu e fica no mesmo quarto. No segundo dia chegam duas inglesas. Não as reconheço, mas elas dizem que já me conheciam também do albergue em San Francisco. No dia seguinte todos saem (ou foram embora ou trocaram de quarto, cuja janela fica totalmente exposta aos barulhos dos bares da rua até as duas da manhã. Chega uma argentina. Nancy. Ela fala mal inglês, entende pouco, então me esforço para falar espanhol, coisa que nunca experimentei fazer antes. Eu entendo 90% do que ela diz na sua língua, então passo o resto do dia (vamos jantar e à noite a um bar) praticando meu ridículo castelhano. Nancy mora na Patagônia, e diz que não há nada para se fazer lá, que é um tédio total. Então à noite se pinta toda (com certo exagero para o meu gosto, pois a maquiagem acrescenta alguns anos aos seus 29), põe um vestido preto curto e diz: “Quiero bailar”. Ainda ficamos um tempo no albergue, jogando “beer pong” em duplas e perdemos dois jogos. Vamos a um bar com música alta, peço uma cerveja e me sento. Ela está inquieta, quer “bailar”. Ela convida para ir a até a pista. E então começo a fazer aquilo que pra mim é um dos piores constrangimentos que a condição humana já me impôs: dançar. Quer dizer, nenhuma pessoa sã consideraria aqueles movimentos desengonçados e desritmados  que faço algo que se poderia chamar de dança. Fico no sacrifício por alguns minutos, esperando que ela se canse e me libere da tortura moral a que sou submetido. Depois de tentar convencer a mim mesmo por 20 minutos que ninguém estava prestando atenção em mim mesmo, consigo relaxar um pouco e logo ouço, de Nancy: “Too close.” Finjo que não entendo, e me aproximo mais, colocando a mão esquerda em suas costas (nuas pelo corte do vestido), e a mensagem vem clara: “No me toques”. Retiro a mão, e vou buscar mais uma cerveja, pra afogar a dupla humilhação. 

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