sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Nova York


Vou tomar a liberdade de escrever Nova York, ok?
"Ok", você responde.




Tinha grandes expectativas sobre a cidade. Não foram correspondidas, mas também não sei explicar direito o porquê. Talvez porque tenha sida a minha última parada na América do Norte, antes de ir pro Brasil, e já estava um pouco cansado (fiz as malas dez vezes em 45 dias).  Talvez porque nos dois voos que peguei para ir pra lá fui atacado por uma gigantesca dor de ouvido. Talvez porque estivesse fazendo o maior calor que senti desde o último verão portoalegrense. A visita a Nova York me lembrou minha primeira visita a São Paulo (não que eu queira comparar as duas cidades: perto de Nova York, SP não passa de um imenso  lixão a céu aberto). Em São Paulo fiquei decepcionado por não ser bem o que me diziam: uma cidade que, como NY, nunca dorme, e que tem tudo. A cidade brasileira tem tudo muito espalhado e, ao contrário do que dizem, dorme sim, e ainda acorda tarde.

Com Nova York não é muito diferente. Sim, a cidade tem de tudo, mas me diga quem é que realmente aproveita esse “tudo”? Ninguém. Como cidade oferecendo opções à sua população, é bem completa mesmo, como poucas no mundo. Mas ao considerarmos os indivíduos, é um mundinho que continua pequeno, do tamanho de cada um. Você não vai almoçar e jantar em restaurantes de 24 países diferentes este mês. Vai experimentar, no máximo, culinária de três ou quatro países, e provavelmente vai começar a repetir o seu café favorito, o seu restaurante, pizzaria e assim por diante. Procurei algum lugar onde comprar um sanduíche de falafel (onipresente em Vancouver) e penei para encontrar. Quando finalmente achei, numa carrocinha de rua, o sanduíche não era muito bom. Há a questão prática também: é tudo muito afastado, e são poucas as regiões com várias opções num mesmo local. E também não é que Nova York seja tão grande, a questão é que chamam de Nova York as cerca de cinco cidades aglomeradas na região. Central Park foi outra decepção. Ingenuamente, pensava tratar-se de um oásis de silêncio no meio da aglomeração do centro, mas é difícil achar um lugar silencioso e tranquilo no meio do Parque que, estreito, está sempre cercado de ruas movimentadas pelos lados leste e oeste. Também há uma rua que cruza o parque no meio. Enfim, difícil escapar do barulho em Nova York.


Os dias que se seguiram (fiquei 5 noites lá) foram mais proveitosos, e consegui aproveitar a cidade melhor, sempre caminhando muito e usando aquilo sem o qual a cidade seria impossível: o metrô.
Saí alguns dias com Harry, meu roommate australiano que, pra provar minha teoria, começou a comer bagel sempre no mesmo local e horário, depois pegar comida sempre no mesmo buffet e ir comer sempre sentado na mesma pedra no Central Park. Depois de um tempo circulando por lá, a confusão de linhas de metrô e conexões vai se tornando um pouco mais simples e familiar, facilitando os deslocamentos.


Fiz quase todos os programas de turista: Biblioteca Central, Brooklyn Bridge, Staten Island, Governor’s 
Island, Times Square, Empire State, Central Park, Metropolitan Museum, etc, etc, mas um dos melhores programas que fiz não está no roteiro da maioria das pessoas: o bar mais antigo de Nova York. Fundado em 1854, o McSorley’s por dentro parece um museu, ou melhor, como um porão abandonado há mais de um século. Todo de madeira, empoeirado, com “decoração” desleixada, um monte de objetos amontoados ou pendurados. Só há duas opções de cerveja: clara e escura,  e elas vêm sempre em dois copos. Se não há mesas suficientes pra todos os clientes, os garçons colocam as pessoas em mesas já ocupadas por outras, favorecendo o clima de integração. É barulhento mas , ao contrário de muitos pubs, dá pra ouvir e ser ouvido sem problemas.

The city that doesn’t sleep.



Nos EUA e no Canadá, e avida noturna encerra cedo. No Canadá os bares fechavam às duas da manhã, ou, se ficavam abertos, não serviam mais bebida depois desse horário. Nos EUA fecham ainda mais cedo, às vezes 1:30 da manhã. Reclamei disso um dia e alguém me disse: então você vai gostar de Nova York. Sim, como diz a música, é a cidade que nunca dorme. Durante o dia, vi uma placa curiosa em um bar: “Open till late: 2am”. Duas da manhã é tarde?! Uma noite, eu,  um argentino, um australiano e duas mineiras, saímos por Manhattan e depois da uma da manhã decidimos procurar um bar. Queria achar alguma rua cheia de bares e restaurantes e pubs dos dois lados, como há em qualquer cidade grande do mundo. Perguntamos por um lugar assim e as respostas eram sempre vagas. Uma das gurias quis ir num bar brasileiro, sobre o qual havia lido no seu guia. Pegamos um trem, caminhamos, chegamos lá e estava fechado. Caminhamos mais, até que alguém apontou o SoHo, e depois de vários quarteirões, agora já perto da 1:30, achamos alguns bares e restaurantes. Fechados. Os únicos locais ainda abertos eram armazéns. Num deles pedimos informação e finalmente encontramos um bar aberto, quase vazio. Como uma das moças era menor de 21, não conseguimos entrar. Decepção.


Nova York é um ovo

Vou com Harry até o Dakota Building, prédio onde John Lennon foi assassinado. Dali, vamos procurar o Metropolitan Museum e atravessamos o Central Park em algum ponto no meio. Vamos por um dos vários caminhos, conversando, quando avisto, vindo na direção contrária, um rosto conhecido, que custo um pouco a lembrar de onde. É um rapaz, ao seu lado uma moça, que fecha o quebra-cabeça.  É o casal inglês que conheci em San Francisco e do qual me desencontrei, sem pegar telefone ou qualquer contato, impedindo que nos encontrássemos novamente em NY. Chamo: “Joe”. Conversamos por uns 5 minutos, trocando impressões sobre a cidade. Numa cidade de 10 milhões de pessoas, quais as chances de encontrá-los assim, por acaso? Muitas.


domingo, 26 de agosto de 2012

San Francisco (parte 5)



Volto a San Francisco, minha cidade favorita até agora na viagem. Mas não é uma repetição. De início, fico em outro albergue, em outra zona da cidade, e vejo coisas bem diferentes. É como se fosse uma nova cidade, pois San Francisco parece esconder várias outras cidades dentro de si, basta ter paciência e tato para descobri-las.

Caminhadas

Casey

Caminho e ouço um rapaz dizer: “Diego!”. Um conhecido? Não, na verdade ele disse “San Diego!”, pois estou usando um boné de lá. Ele tem uma mochila grande nas costas e parece um viajante. Não sei como o papo começa, mas logo fala sobre um livro que leu. “Keep the river on your right”, que eu lembre. É sobre um cara, americano, conta ele, que viajou para a Argentina e viveu com tribos primitivas, que descobriu, mais tarde, serem canibais. Descobre, também, que saqueiam e matam as tribos vizinhas, capturando suas mulheres e tudo o mais. Um dia, uma das tribos vizinhas invade a sua, ele é poupado e, em meio a um ritual, ele se vê comendo carne humana também. Menciono o livro “Into the Wild”, lançado no Brasil como “Na natureza selvagem”. Ele diz que adora o livro, que admira muito MacCandles, o biografado, por ter tido a coragem de abandonar tudo e se livrar dos seus bens materiais. Diz que o filme, dirigido por Sean Penn, a quem também admira, foi ótimo. Eu falo com Casey, um jovem americano que viveu em várias cidades dos EUA. Sua mãe se mudou com ele e o irmão mais velho para outra cidade pois estava cansada de apanhar do seu pai, que ele nunca mais viu. Se empolga e, bem articulado, emenda um assunto no outro. Fala mais sobre a experiência de inserir em outras culturas e absorver as diferenças.


Caminhamos por vários quarteirões pela Market Street. Presto mais atenção ao seu aspecto, que não é dos melhores. Tem manchas e cicatrizes nas mãos, e roupas sujas. Penso se não vai me pedir alguma gorjeta em troca do seu entretenimento . Fala do Brasil e em como tem vontade de conhecer o país um dia. Comenta que, em viagem, não conhecemos as pessoas normais nas cidades, mas sempre os extremos, sejam as pessoas mais amistosas ou as mais perigosas. Não posso deixar de concordar. As cidades, para os viajantes, são sempre um pouco enganadoras, pois se vive num mundo à margem. Já seguimos caminhando e conversando por 15 minutos. Lá pelas tantas, Casey para e diz: “Já passei do meu ponto há alguns quarteirões, mas a conversa estava boa e não quis interromper.  Antes de nos despedirmos, ele diz, contrariando totalmente a minha expectativa: “Você precisa de alguma coisa?”, e coloca a mão, meio indeciso,  em uma pequena bolsa que carrega. Olha minhas pulseiras, tira duas suas e me dá. “Pra ter uma lembrança de San Francisco”, diz. Uma delas diz “Las Vegas”, a outra “Tipsy”. Seguimos cada um nosso caminho.


Carolin

Saímos para uma longa caminhada.  Nenhum de nós sabe, mas serão pelo menos 6 horas andando. Vamos para Golden Gate Park. O sobrenome dela é Teufel. Me diz que em alemão significa “Devil”. Na entrada do Golden Gate park, se você ficar parado por mais de 10 minutos, alguém certamente lhe abordará oferecendo maconha.No parque, tenho provas de que o meu perfeito senso de direção, do qual tinha certo orgulho, pois parecia ter uma bússola interna sempre me indicando onde é o Norte, está irremediavelmente avariado. Seguindo minhas indicações, damos voltas em círculos, nos perdendo várias vezes no enorme parque, até que depois de algumas horas desistimos de cruzá-lo e voltamos ao ponto inicial.



Digo que na volta podemos pegar um ônibus, pois será no mínimo mais uma hora de caminhada, e Carolin disse estar muito cansada.  Ela diz que aguenta caminhar mais um pouco. Seguimos caminhando. No caminho, decido dar uma esticada até Japan Town. Não há nada de mais lá. Mesmo com um mapa nas mãos, cometo um erro absurdo e tomo a direita quando deveria virar à esquerda. Só percebo 10 quarteirões depois. Ou seja, são 20 quarteirões adicionados ao passeio gratuitamente. Carolin, cansadíssima, quase não acredita no meu erro. Toma o mapa das minhas mãos e diz que vai fazer o próprio caminho agora, fechando a cara. Sugiro uma ou outra alteração na rota de volta, que ela ignora. Caminhamos muito, subindo e descendo ladeiras. Eu tento apreciar a viagem, Carolin, séria, só quer chegar e tomar um banho. Chega ao albergue com uma cara de exausta. Diz que no dia seguinte quer ir a um certo museu. Minto que sei onde fica, e que posso levá-la até lá. Ele me olha e diz: Com você, não.


Ismos



Barbarismos
Uma galesa cercada por um brasileiro, um americano e um alemão. Entediada, ela lança o desafio: queda de braço entre os machos. Americano X Brasileiro. Apesar de o brasileiro perder na queda de braço até pra mulher, e ter tido o pulso quebrado no ano anterior, consegue resistir por vários segundos contra o americano, chegando a pensar que este está apenas prolongando o sabor da vitória ao fingir fraqueza. O ângulo indica favorecimento ao brasileiro. O olhar do americano, de surpresa e esforço, é o anúncio desesperado da sua derrota. Brasileiro X Alemão. Brasileiro vai cheio de confiança. Esgotado da batalha anterior, não resiste por muito tempo, e logo vê as costas da sua mão beijando a fria mesa. Alemão e Galesa unem as forças, sem embate.


Racismo
Dois colegas de quarto são um casal inglês (Nordeste da Inglaterra, me diz ela, confiando que não vou mesmo saber a cidade. “Sul do Brasil”, me vingo eu quando me pergunta de onde sou. Ficarão ali por mais alguns dias e depois irão pra Nova Iorque. Digo que também vou pra lá, no mesmo período que eles. No fim, com desencontros, não os vejo mais nem pego contato nem nada. Nunca mais nos veremos.

O outro roommate é turco. Quieto, na dele. Ouve hip hop no computador sem fone de ouvido, mas não crio caso. “Fucking Asians!”, diz ele, um dia, do nada, decerto escutando Kanye West, ou 50 cent ou alguma merda dessas. Por quê, digo eu, supreso. “Fucking Asians. So many damn Asians”, insiste. Eu digo que não entendo o quen ele está querendo dizer. Agora é a vez dele de ficar surpreso, pois para ele parece que a sua declaração prescinde de justificativas. Explica que naquele dia chegaram muitos asiáticos no albergue. Não gosta deles. Não gosta das mulheres asiáticas. Ainda de boca aberta com suas declarações, retruco tentando disfarçar ao máximo o meu choque de ter um colega de quarto abertamente racista (e ainda por cima racista com uma das minhas raças favoritas!). Digo que essa noite vou apresentar a ele uma asiática. E que depois disso ele vai acabar mudando de ideia. Ele só ri, para meu alívio.

À noite, o mestre de cerimônias, anunciando a festa, revela que há um policial infiltrado no albergue, e que na noite passada ele prendeu uma pessoa. Segundo ele, essa pessoa resistiu à prisão e o policial teve que usar a força. Diz, gargalhando,  que assistiu ao vídeo da prisão uma dúzia de vezes. Lá pelas tantas, ao querer descrever a cena, solta um “Rodney King”.



Após, descer do palco, sorrindo, é abordado por uma negra. “Eu preferiria que você nunca mais usasse essa referência a Rodney King”, diz ela. Daí se segue um curto debate cheio de ataques e defesas, com ele se defendendo da sua suposta referência racista. Ele diz que ninguém se ofendeu. E ela, fazendo um largo gesto com a mão, diz que não há qualquer outro negro entre as dezenas de pessoas na sala. Ele volta ao palco, com a moça, e diz que há um mal entendido, que por ter usado essa referência uma pessoa se sentiu ofendida. Ela pede que ele explique quem foi Rodney King, pois muita gente pode não saber, afinal faz 14 anos e muita gente ali era criança na época. Ele responde, ainda no microfone: “Alguém aqui se importa?”. Ela toma o microfone e explica o episódio, afirmando que é por referências supostamente inocentes e jocosas como a dele que se perpetua o racismo. Ela desce do palco e ele, em sua defesa, diz que estudou numa escola de negros, sendo o único chinês, e que sabe como é, e que os seus melhores amigos são todos negros. Ele a chama, e ela, a um canto da sala, de costas, tomando café, o ignora. Uma moça, branca, se levanta e vai até ela, colocando a mão em suas costas e falando algo. Ela não se move.



segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Venice Beach


Foram três horas de San Diego a Los Angeles. Peguei o famoso e clássico Greyhound, companhia de ônibus que opera nos EUA desde os anos 20. O legal é que logo na entrada tu tem todas as tuas malas revistadas, e um detector de metal é usado pra ver se tu está portando algo ilegal. O cara achou uma tesoura na minha (ui) necessaire, e depois encontrou outra maior na mochila. Falou com um suspiro: “ahhh....” como se fosse do FBI e tivesse encontrado um dossiê pra matar o presidente americano. O que eu posso fazer, eu preciso de tesouras na minha vida. “Aquela tudo bem, mas esta....” E no fim concordo que eu transfira a testoura grande para a mochila que vai no bagageiro, que ele também não quer criar caso no meio da sua manhã tranquila de trabalho.

Chego em Los Angeles, ainda levarei umas duas horas até chegar em Venice Beach. Mesmo depois de sessenta e poucos minutos na cidade ainda não avistei nenhum branco. Onde será que eles se escondem?


Chego na casa do meu host. Josh. De novo, como os outros hosts, me deixa super à vontade. E agora, depois de dois dias na casa dele, não sei se consigo passar uma boa ideia do cara. Ele tem tipo a minha idade, mas sem a seriedade que se espera de gente da minha idade. No seu perfil já anuncia que a casa é “420 friendly”. Em pouco tempo dá pra ver que Josh não se interessa por quem não seja “cool”, sem nada pra contar, sem histórias pra dividir, sem coisas pra acrescentar. Mas mesmo assim vai com  a minha cara. A princípio eu poderia ficar apenas duas noites, mas na segunda noite me chama e diz: “Não sei quais são teus planos, mas tu é mais do que bem vindo pra ficar mais tempo se quiser.”


O apartamento fica num prédio de tijolos vermelhos  construído nos anos 1920, hoje meio hippie meio hipster, a uma quadra da praia, biclicletas retrô por tada a parte. É um cara relax, mas o apartamento é arrumado, limpo e com um bom espírito artístico (as paredes são decoradas com quadros e pôsteres). Josh não tem absolutamente nada na sua geladeira. Ok, meia garrafa pequena de sprite. No congelador, apenas gelo. “I’m not big on food”, ele esclarece. Ele se interessa  por tudo, é curioso e consegue manter uma conversa (com ideias originais) sobre qualquer assunto que apareça, e sabe improvisar tiradas espirituosas com tudo o que acontece em volta. Assistimos a v[arios epis[odios de Louie e falamos sobre ex-namoradas.  Saímos na primera noite e me apresenta a night life de Venice Beach. É muito pouco tempo, mas o cara já se comporta como um amigo de longa data. Não vou contar todas as histórias que me contou (por exemplo, como  já foi preso 7 vezes em 3 países diferentes), mas só posso dizer que é um rapaz que se interessa por qualquer coisa que cheire a novidade. Ele tem uma carteirinha pra comprar maconha em lugares especializados, que vendem a erva com a desculpa de que é para uso médico. Diz que já hospedeu mais de 100 pessoas pelo CS, e que eu fui o primeiro brasileiro. Até agora tenho dado muita sorte com meus hosts. 




domingo, 12 de agosto de 2012

San Diego


É uma pena que não tenha muita coisa boa pra falar sobre San Diego.

Já havia estado lá em 1999, há exatos 13 anos, e foi minha primeira experiência internacional (Uruguai, tão parecido com o Rio Grande do Sul, não conta). Na época fiquei deslumbrado com tudo, com o sol incessante, com a arquitetura, com as cores, com os carros, com os diferentes refrigerantes disponíveis nas vending machines, com os supermercados 24h, com os trolleys, com as pessoas. Mas já sabia que, depois de morar um ano e meio no Canadá e ter viajado por toda a costa oeste americana por três estados, San Diego não seria mais a mesma coisa. A cidade cresceu, e eu também mudei.

A primeira impressão da nova visita se dá pelo cheiro. Cheiro de urina, principalmente. Desde a chegada à estação Santa Fe Depot, o odor de mijo parece estar impregnado dentro da estação, fora dela, nas paredes, nas ruas, nas pessoas, no ar. O cheiro me acompanha ainda dentro do trem e também no ônibus, onde embarcam pessoas feias e malvestidas, que não lembro ter visto em tão grande número há anos atrás. Ao caminhar pra casa, o cheiro finalmente esvanece, mas fica na memória.


Aquilo que parecia novidade agora é comum, e outros aspectos, comparados às outras cidades, deixam a desejar. Por exemplo, o sistema de transporte. Poderia enumerar aqui dez razões pelas quais San Diego tem disparado o pior sistema de transporte público entre todas as cidades que já visitei na América do Norte. Grande demora dos ônibus e trolleys, falta de conexão com outras linhas, itinerários desnecessariamente longos, não há reaproveitamento de tíquetes entre diferentes linhas (o que praticamente força o passageiro a comprar o passe diário).

Há algumas ciclovias, mas quase ninguém anda de bicicleta. San Diego não deixa dúvidas: foi contruída para os carros. Se deslocar a pé, com exceção do Centro, é um suplício. Há de se caminhar por várias quadras até que se chegue a um ponto onde a travessia de pedestres é permitida. Em muitas ruas não há calçadas. A falta de consideração com os que não são motoristas pode ser notada também dentro dos ônibus. Espaços muito reduzidos entre os assentos não dão lugar para as pernas, e o usuário deve sentar-se de lado (mesmo eu, que não sou nada alto: 1,73m).


San Diego foi também uma quebra de ritmo na viagem. Reencontrei a mesma família que me hospedou em 1999. Um casal de irmãos iranianos criados em Londres e já há décadas nos EUA, Masoud e Minou. Na primeira vez fiquei na casa dele, agora na confortável casa da irmã. Depois de dormir no chão, dividir quartos com até 12 pessoas, tomar banhos frios e comer pão velho com água no café da manhã, foi um choque de conforto dormir numa cama macia com 4 travesseiros mais macios ainda num quarto só pra mim (com TV a cabo que não cheguei a ligar), e uma oferta de pães, bolos, geleias, sucos e frutas (figos, melancia, melão).  Apreciei a hospitalidade, mas acho que me fez mal, me deixando mais preguiçoso e reticente se deveria mesmo ficar tão à vontade a ponto de ficar mal acostumado antes de seguir viagem (experimentei a rede no vasto quintal apenas por 5 minutos).


Minou já tem seus cinquenta e tantos e não é muito de sair à noite, então ficamos em casa literalmente tomando chá (e às vezes uma taça de vinho branco gelado em cálices bregas) e vendo TV. Ela gosta de falar, emenda um assunto no outro, religião, Deus, comida, livros, Irã, fofocas, relacionamentos, maternidade, etc  e tento não interromper. Digo que vou me sentir mal se não puder ajudar na casa, e ela me leva a sério. No dia seguinte já tenho uma lista de tarefas: botar a mesa do café da manhã, lavar a louça,  levar o lixo, limpar o pátio, juntar as folhas secas, mover os vasos e mesas do quintal, tirar as teias de aranha, preparar o jantar, fazer a mesa, lavar a louça.

Os programas com Minou são invariavelmente com gente mais velha que ela. Num almoço de iranianos, a pessoa mais nova devia ter o dobro da minha idade. Quando sabe que sou brasileiro, uma mulher começa a falar do passado, que conheceu um brasileiro há muitos anos, que gostava muito dele, e que depois que ele voltou para o Brasil perderam o contato, coisa que ela lamenta demais (está lacrimejando?), pois não sabe se ele está vivo ou morto. A casa é do Dr. Taraz, um senhor de 88 anos que Minou diz ser “um ser humano”, como se isso fosse o maior elogio que alguém pode receber. É um geólogo que viajou o mundo e que supostamente tem histórias pra contar. Me sento ao lado dele, na cabeceira da mesa, ansioso para ouvir as tais histórias. As mulheres não param de me servir comida. Arroz, muito arroz. Se soubessem o horror que tenho a arroz...Mas como fingindo satisfação. Termino  com esforço, e me servem de mais arroz. Isso deve ser um problema que afeta a visão das pessoas idosas, só pode: elas enxergam as coisas mais estreitas do que são, e pra elas todos são magros esqueléticos (que precisam de quantidades enormes de comida para ficarem saudáveis novamente). Converso com o Dr. Taraz, mas não vejo a inteligência toda com que Minou lhe atribui. Há alguns meses teve um derrame, e sua fala é arrastada, os olhos são embaçados e vagos, como se estivesse permanentemente se acordando, e ele se repete, e se repete, e se repete. Quando faço alguma pergunta, em vez de responder e comentar, ele apenas repete o que já havia dito antes. O ritmo de sua fala, associado à grande quantidade de arroz ingerido durante o almoço (e depois ainda teve sobremesa e frutas e chá) me embalam no sono. Em alguns minutos estarei no chão da sala, dormindo um longo e profundo sono...


Na casa de Minou mora também Barry, que aluga um quarto. Ele é ex-noivo da filha de uma amiga de Minou. Quando ele estava procurando apartamento, Minou ofereceu o quarto como presente de casamento, até que fossem morar juntos, o que lhe daria boas chances de economizar uma grana. Nesse meio tempo, sua noiva terminou com ele, mas Minou manteve a oferta. Mas ele fez questão de pagar. Barry é um Marine, soldado que já foi pro Irã, Iraque e Afeganistão.  Tem uma Harley-Davidson que passa meia hora por dia polindo, e gosta de caçar veados. É um tipo meio tosco, de cabeça quadrada, simples e com jeito de soldado perfeito: é um americano orgulhoso, forte e burro. Ou seja, eu teria todos os motivos pra odiá-lo, senão pra ignorá-lo. Mas o cara se mostra extremamente gentil com todos, amigável, interessado, e sempre elogia a minha comida (não para mim, mas para os outros que não tiveram a oportunidade de experimentar meu angu). E eu, que odeio as guerras americanas e militares em geral, que já escrevi artigos contundentes condenando a caça e os caçadores, me surpreendo ao me deparar com mais um dos meus preconceitos sendo derrubado.
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Minou teve que viajar, então saí da casa dela e fui para um albergue. Logo na entrada, vejo uma cara conhecida, é Ian, que conheci em San Francisco. Ele está chegando ao mesmo tempo que eu e fica no mesmo quarto. No segundo dia chegam duas inglesas. Não as reconheço, mas elas dizem que já me conheciam também do albergue em San Francisco. No dia seguinte todos saem (ou foram embora ou trocaram de quarto, cuja janela fica totalmente exposta aos barulhos dos bares da rua até as duas da manhã. Chega uma argentina. Nancy. Ela fala mal inglês, entende pouco, então me esforço para falar espanhol, coisa que nunca experimentei fazer antes. Eu entendo 90% do que ela diz na sua língua, então passo o resto do dia (vamos jantar e à noite a um bar) praticando meu ridículo castelhano. Nancy mora na Patagônia, e diz que não há nada para se fazer lá, que é um tédio total. Então à noite se pinta toda (com certo exagero para o meu gosto, pois a maquiagem acrescenta alguns anos aos seus 29), põe um vestido preto curto e diz: “Quiero bailar”. Ainda ficamos um tempo no albergue, jogando “beer pong” em duplas e perdemos dois jogos. Vamos a um bar com música alta, peço uma cerveja e me sento. Ela está inquieta, quer “bailar”. Ela convida para ir a até a pista. E então começo a fazer aquilo que pra mim é um dos piores constrangimentos que a condição humana já me impôs: dançar. Quer dizer, nenhuma pessoa sã consideraria aqueles movimentos desengonçados e desritmados  que faço algo que se poderia chamar de dança. Fico no sacrifício por alguns minutos, esperando que ela se canse e me libere da tortura moral a que sou submetido. Depois de tentar convencer a mim mesmo por 20 minutos que ninguém estava prestando atenção em mim mesmo, consigo relaxar um pouco e logo ouço, de Nancy: “Too close.” Finjo que não entendo, e me aproximo mais, colocando a mão esquerda em suas costas (nuas pelo corte do vestido), e a mensagem vem clara: “No me toques”. Retiro a mão, e vou buscar mais uma cerveja, pra afogar a dupla humilhação. 

domingo, 5 de agosto de 2012

Santa Barbara

Quanto mais afastado fico de Vancouver, menos asiáticos eu vejo. No Green Tortoise só havia uma chinesa professora de inglês e um grupo de três coreanos (duas moças e um rapaz) que estão num projeto por várias cidades dos EUA, ou EEUUA, como gostam de escrever os RRPP. A maior parte é de americanos, australianos, e alemães. Estes provavelmente são os mais numerosos entre todas as nacionalidades. Num jantar, me vi rodeado de alemães por todos os lados. Em Santa Barbara saio na primeira noite com quatro alemães. Na segunda noite saio com dois alemães, um rapaz e uma moça. Tenho vergonha de admitir que, apesar de ter um bisavô alemão, sempre tive um persistente preconceito com tudo o que diz respeito à Alemanha. A língua era a última que gostaria de aprender, o país o último que gostaria de visitar no universo, sua cultura e suas gentes não me interessavam. Sim, admito, cada alemão e alemã que eu já conheci na vida eu costumava imaginar vestindo o uniforme da Gestapo. 


No Canadá evitava os alemães, e creio que eles me evitassem também, o que era um arranjo do qual não podia reclamar. Mas nessa viagem foi praticamente impossível evitar os alemães ao longo do caminho. Ainda bem, pois se o fizesse não teria conhecido gente ótima, boa de papo, divertida e amigável ao extremo, como Berit, Michael e Jorg, que conheci em Santa Barbara. Alemães que me fizeram perder qualquer resquício de preconceito que eu pudesse ter com esse país e seus habitantes.


Já conhecia Michael da primeira noite no hostel, quando saímos com outros três alemães. Nos preparando para sair de novo, conhecemos o largo e falastrão Jorg, que conversa no lobby com duas moças suíças, falando alto e gargalhando mais alto ainda, sempre das suas próprias piadas. No nosso quarto chega Berit, uma moça com cara de inocente e de sorriso bonito. A convidamos achando que vai declinar, pois está com cara de cansada (dirigiu a tarde inteira), mas diz: “Why not?”. Na hora de sairmos, chega uma moça com uma embalagem de isopor, perguntando se estamos com fome, pois tem algumas sobras do jantar. Jorg imediatamente se interessa pelo conteúdo, e fica feliz ao saber que é costela e batatas. O bávaro pega a caixa e nos segue comendo avidamente com as mãos lambuzadas de gordura, que limpa na camisa xadrez.


 Diante das inúmeras opções da State Street, a rua comercial da cidade e única com vida noturna, sugiro fazermos um bar crawl, pulando de lugar em lugar. Jorg diz que quer tomar um gole de vinho, mas sugiro um bar chamado Whiskey Richards. É diferente do bar de turistas a que fomos na noite anterior, cheio de gente bronzeada e bonita, como convém a uma cidade praiana no verão. Neste outro, o povo é mais heterogêneo: gente tatuada, punks, velhos, mulheres oxigenadas. Mesas de sinuca, cartazes de bandas de rock. Uma banda se prepara para tocar no pequeno palco ao fundo. Ficamos no balcão. Jorg, conversador, fica de papo com um cara ao lado dele. Pede um vinho branco. Alerta que entende da coisa, pois trabalha fazendo vinho. Fico atento ao seu primeiro gole: ele comprime o rosto e fecha os olhos, como se tivesse tomado mijo azedo e diz pra bartender: esse vinho não é bom. Ela se desculpa e serve outro; e ele repete a expressão de desagrado anterior: esse também não é bom, ele diz. Ela está pronta pra recolher o copo, e ele diz: mas vou tomar mesmo assim. Ficamos conversando eu, Berit e Michael, enquanto ele continua falando com o cara ao lado. Lá pelas tantas ele se vira pra gente, com uma cara de surpreso e diz: “Isso é um bar gay!”. Olhamos em volta, para a decoração e para as pessoas, e discordamos. Ele insiste: Bom, talvez em dia de semana não, mas é definitivamente um bar gay. Explica: o cara ao lado estava dando em cima dele. Michael diz: não é um bar gay, talvez só esse cara seja gay. Jorg  fala que é incrível como gays dão em cima dele, que na primeira vez que isso aconteceu ele tinha catorze anos. Ele disse que falou pro cara: “Eu tenho 14 anos!”, e o cara, “eu acho que eu posso esperar dois anos”. Berit brinca que talvez seja hora de ele reconsiderar. Discutimos se é mais fácil para gays conhecerem alguém num bar do que heteros, no que acredito. Berit diz que acha que não, que é a mesma coisa, a não ser que eu esteja falando de sexo, aí sim. Claro que estou falando de sexo, eu digo. Ah, então está falando do mais importante, diz ela. Berit mora na Alemanha e namora um espanhol que mora na Irlanda, e que pretende morar junto com ela ano que vem. Digo que não recomendo isso pra ninguém, mas que pode funcionar e que não tem como saber se não experimentar. Olho para o lado e vejo que Jorg voltou a conversar com o cara que deu em cima dele. Nos entreolhamos e Michael diz com uma piscadela: “Talvez seja melhor deixarmos eles sozinhos”. A banda começa a tocar muito alto e não conseguimos mais conversar, então partimos para o segundo. 


De novo, Jorg pede vinho, depois de pedir várias amostras até achar um que é passável, segundo ele. Antes de irmos para o terceiro bar, ele diz que não pode mais, que ficou cansado e precisa ir pra casa. No terceiro bar, quase vazio depois da uma da manhã, não temos tempo de terminarmos a cerveja que acabou de chegar: o bar está fechando e precisamos sair imediatamente.  Pergunto ao garçom se nos pode dar copos plásticos para levarmos e ele responde: “That would be illegal”. A única opção, se quisermos, é ir numa loja de conveniência, o 7-Eleven. Berit insiste pra irmos, mesmo que seja longe dali. Custamos a achar o lugar. O limite para venda de bebidas alcoólicas é 2 da manhã. São 1:58 quando compramos a nossa. A dupla que chega depois da gente, às 2:02, insiste com o caixa, mas não, ele não pode vender álcool depois das duas. Como no hostel é proibido beber, sugiro irmos para a praia, onde, de todo modo, também é proibido. Bebemos no escuro, sempre de olho na polícia. Passados quinze minutos, avistamos um carro de faróis e uma luz no topo acesos no cais, ele se vira na nossa direção, a uns 200 metros, e começa a vir devagar. Pego as três garrafas abertas, ainda cheias, esvazio o conteúdo e as enterro na areia. Portar bebida fechada não é proibido. Quando o carro chega a uns 5 metros da gente, quase parando, já imagino a cena: checagem de documentos, multa pesada, seguida de prisão e deportação imediata, tudo o que eu preciso na minha última noite em Santa Barbara. Mas o carro passa reto, vai para a rua e some. 


Avistamos um grupo tocando violão e cantando: 6 suíças e 4 alemães. Nos juntamos mas não somos muito bem recebidos, mesmo assim continuamos ali por mais uma hora. Berit, alegre, me abraça, beija no rosto, e dá cutucões quando faço alguma piada. Faz o mesmo com Michael. Ambos dizem que vão para o Brasil e ficarão na minha casa na Copa do Mundo. Digo que todo mundo fala isso, então ela escreve a declaração num papel, o qual é assinado pelos dois.

Na volta para o albergue, sugiro um teste para avaliarmos o nível etílico de cada um: dar dez passos se equilibrando sobre o trilho do trem. Michael vai até o fim e comemora. Eu dou sete rápidos passos e caio fora do trilho. Berit dá quatro e cai no chão feio, torcendo o tornozelo (que na manhã seguinte ficará do tamanho de uma bola de golfe). Hora de nos recolhermos. Vamos pra casa nos revezando na tarefa de segurar a já cambaleante Berit. 



San Francisco (parte 4) - Argentinos


Durante o café da manhã, Egidio se aproxima da minha mesa, sério, e cochicha, “Viu, há argentinos aqui. Não vai brigar com eles?” Ah, é?, digo eu. Não tenho nada contra eles. “Eu sei”, responde Egidio antes de reencher a cesta de bagels.


Pela tarde, digitando, minha bateria dá sinais de estar no fim. Vou até uma mesa  ocupada apenas por mochilas perto das tomadas para poder recarregar. Logo os donos das mochilas voltam, e peço desculpas pela invasão do seu espaço. Que nada, dizem. De onde são? “Argentina”. “Ah, então são vocês os argentinos? Já tinham me falado”. Perguntam se falo castelhano. (Lembro do comentário de uma amiga colombiana  quando tentei falar espanhol com ela: “Parece um mexicano bêbado”).“Comprendo un poco, pero no hablo”, então seguimos falando inglês. São Lucas e Natalia, de Córdoba, já viajaram pelo Brasil e sabem onde fica Porto Alegre. Falamos sobre a estúpida e artificial rivalidade Brasileiros X Argentinos. Natalia diz que adora o Brasil e os brasileiros e Lucas me garante que nunca ouviu um argentino dizer que odeia  brasileiros.  Lucas, porém, diz que os argentinos de Buenos Aires sim não prestam e se acham melhores que os outros.
Estão viajando de carro, e viajam também para o sul da costa oeste, com planos de visitar alguns parques nacionais no caminho. Vamos embora de San Francisco no mesmo dia, e depois de 15 minutos de conversa me convidam pra ir com eles. É tentador, mas já havia feito outros planos e nossos itinerários não batem,  então declino a oferta.